Os falaciosos “valores da festa brava”
(e um evento que
foi, incompreensivelmente, tido de de interesse público)
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Reneguemos que o Povo Açoriano e os Açores sejam conotados estas barbaridades que nos envergonham |
Em 1952 escrevia
meu Pai, na introdução de pequeno livrinho que então publicou, o seguinte: “Há
na Sagrada Escritura dois provérbios característicos pela sua aparente
contradição. Um diz: não respondas ao louco segundo a sua loucura, para não
vires a ser semelhante a ele. O outro aconselha: responde ao louco segundo a
sua loucura, para que ele não imagine que é sábio. Perante a nota de reportagem
“Festa brava oferece “escola de vida” – presente no Diário Insular, na sua
edição de 28/Jan. do ano corrente, onde se apresentam algumas conclusões do III
Fórum Mundial da Cultura Taurina, durante algum tempo, vacilando entre os dois
conselhos, hesitei em “responder”, isto é, em pronunciar-me sobre o assunto…mas
tal como em tempos decidiu meu Pai, decidi-me hoje pela resposta.
As referidas
conclusões, que foram lidas por um conhecido autor de obras sobre a “corrida” e
defensor da cultura tauromáquica, o filósofo e professor Francis Wolff, apontam
constantemente para os “valores” ligados à tauromaquia, não os identificando ou
concretizando porém (e por que não? Pensar-se-á, acaso, que todos os “valores”
são desejáveis e moralmente defensáveis?) enquanto parecem reflectir o
sentimento dos participantes, que será de perseguição perpetrada pelos ferozes
anti-taurinos - que surgem em toda a nota como os maus da fita.
Anti taurina ou,
mais bem dizendo, anti-tauromaquia como me assumo, e isto desde que aos seis ou
sete anos de idade assisti a uma tourada à corda e acto contínuo me coloquei,
mentalmente, ao lado do animal desnorteado e confuso - que claramente vi como o
mais fraco - jamais persegui, insultei ou injuriei quem quer que fosse por
pensar de modo diverso daquele que reconheço como o meu, muito embora possa,
evidentemente, lamentar que se torne ainda necessário a alguns, no momento
evolutivo em que a espécie se encontra, demonstrar em praça pública que são
mais espertos do que um touro – o que é forçosamente sempre verdade, mesmo para
o mais bronco exemplar de homo sapiens sapiens que possamos imaginar. Porque
dos valores da cultura taurina, tantas vezes referidos, nomeadamente nestas
conclusões, mas raramente identificados pelos seus defensores, imagino eu que o
principal será a modalidade de coragem que leva um humano de físico
comparativamente insignificante a se colocar perante um bicho irracional, mas
dotado de poderosos músculos - coragem essa que não me parece lá muito
superior, porém, à de algum desocupado que finte uma locomotiva que não
consegue, por si mesma, sair dos carris onde foi colocada. Claro que pode
acontecer um acidente, uma escorregadela, um tropeção, e num acaso, ser colhido
o homem, que nesta insensatez perde a sua irrepetível vida, na tentativa de
demonstrar mais uma vez o que toda a gente já sabe. Mas, em princípio, é sabido
que o touro procurará a capa que esvoaça, tal como é sabido que a locomotiva
não sairá dos carris – e com um bocado de sorte ninguém tropeçará.
Bastante maior
coragem revela, quanto a mim, o boxeur que enfrenta um seu semelhante em força
física, habilidade e inteligência, muito embora o fomento do pugilismo também
não esteja nos meus planos culturais para a terra onde nasci.
Aprecio a coragem
e a destreza físicas, mas mais defendo a promoção de um outro tipo da mesma,
que passe muito menos pelos músculos e muito mais pela força de carácter, que
tenha pouco de esperteza saloia e muito de honesto aprumo, que encare o mais
fraco como destinatário dos cuidados e da sabedoria do mais forte – e nunca
como objecto de diversão ou de libertação de instintos sádicos, de que é alvo
fácil. No confronto homem-touro, este é o mais fraco, e não ao contrário –
assim o vi naquela tourada à corda de há muitos anos, assim o vejo hoje.
Como se pode
afirmar que, e transcrevo: “Contra o doutrinamento do politicamente correcto a
tauromaquia tem-se como uma experiência de beleza, paixão, inteligência, que
deveria ganhar espaço como modelo de comportamento, para uma sociedade que vai
perdendo as suas referências essenciais” no contexto de um evento que foi, se a
memória me não falha, subsidiado por dinheiros públicos - que são administrados
e atribuídos por políticos - em pelo menos 60000 euros? Por outro lado, serão
porventura, para os participantes deste Fórum, referências essenciais da nossa
sociedade o conseguirmos divertimento (e proventos económicos, talvez um outro
dos valores que não são explicitados) à custa do sofrimento e da confusão de
animais irracionais? Se assim for, pois é bom que se percam; eu advogo, e
outros como eu advogarão, o surgimento de uma sociedade em que as referências
passem pela compaixão, que não pelo sadismo; pela elevação artística, que não
pelo divertimento boçal; pela sabedoria, numa palavra, que nos levará a
compreender o nosso lugar no planeta como guardiães atentos, que não como
usuários aproveitadores, desinteressados do dia de amanhã que de qualquer modo
não nos atingirá - e já agora aí vai outra expressão que está muito em moda,
como está esta dos “valores” - dado que uma das minhas referências para a
sociedade que almejo é, precisamente, o desenvolvimento… sustentável.
Muitas vezes
tenho constatado com tristeza que, neste meio onde vivemos, parece não ser
necessário compreendermos a fundo o significado das palavras para as repetirmos
de modo considerado oportuno.
Mas voltando à
questão, todos estamos no mesmo barco, homens, touros e árvores; mas só uma das
espécies viventes apresenta o apodo duplo de sapiens, que, muito embora se
trate de uma auto-denominação, deveria implicar forte responsabilização do mais
sábio, logo mais forte, pelos mais fracos.
É verdade que os
participantes do Fórum em questão, mai-lo seu porta voz e aficionados em geral,
têm em pleno a liberdade de não concordar com a minha postura, nestas linhas
expressa, de apreciar uma actividade que outros reputam atávica, desprovida de
dignidade e cruel, e até de a praticar, pelo menos enquanto as leis do nosso
país o permitirem. Não podem é supor que acreditamos que o rei traz vestido um
esplêndido fato quando afinal vem o mais nu que é possível, e isto por muito
filósofo (e especialista em Aristóteles), que seja o porta voz das conclusões…
Aristóteles, que aliás e por não dizer sempre a mesma coisa, acabou por ficar
com as famas de entender a existência dos animais para exclusivo proveito dos
seres humanos - quando afinal, se o disse, também disse o contrário. Mas que
trapalhão.
E, para terminar,
que me seja permitido dizer que a bela ilha Terceira, tão cheia de (outras)
tradições interessantes e de grande importância em termos culturais (e bastará
lembrar aqui o seu valiosíssimo corpo folclórico musical, que me é tão próximo
e não cesso de admirar) não precisa de nada disto para se confirmar como um
destino turístico de primeira água, que manifestações desta natureza só
poderão, infelizmente, deslustrar.
Respondi! e
disse.
Maria Fraga
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