(Um verdadeiro “hino literário” aos animais, da autoria da
jovem e talentosa deputada regional Renata Botelho, para quem a defesa do
bem-estar animal também conta na sua ação cívica e política, assim como o
avanço civilizacional necessário na relação dos açorianos com os seres vivos.)
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I
Foto: Renata Botelho (In Blogue da autora) |
II
Pouco na vida me comove tanto,
desde criança, como a verdade dos animais. A verdade inteira de serem
exactamente o que são, corações limpos alumiando a palidez do universo. Nus,
sem panos a mentir-lhes o corpo nem máscara a fintar-lhes a existência.
Trajados apenas da espantosa grandeza com que pisam a terra, com que se abrigam
da chuva entre pinheiros, com que passeiam sobre o inferno, semeando o dia.
Cresci a encontrá-los e a perdê-los. A exultar a sua presença como uma janela
aberta para o mar. A chorar a sua falta quando amanhã se torna palavra
insuportável. Cresci a descobrir neles aquele alento das madrugadas, que só
poesia e animais são capazes de dizer. A fundir, sem qualquer distância, a
minha na sua vida. Cães, gatos, cavalos, burros, passarinhos de toda a espécie,
tartarugas, grilos, caracóis, lesmas, borboletas, bichinhos de conta. Nunca,
porém, como eles, aprendi a ver para além dos olhos, nem a amar para além do
amor, nem a ler para além das linhas que as minhas mãos baças percorrem. Sou
gente, apenas. Só gente. Assustadiça, medrosa, quebrada, descontente, sem
saber, como eles, segurar com ousadia o fio estreito da vida. Gente, tão
demasiado gente.
III
Tão imperdoavelmente gente.
Porque, ainda que muros de fogo nos separem, imperdoavelmente gente como aquela
gente que os coloca no carro, ruma à mais distante das estradas, lhes atira uma
bola colorida e arranca, facínora, em marcha veloz. Gente como aquela odiosa
gente que os açoita, numa deslealdade sem nome, invejosa da sua valentia. Gente
como aquela gente, de mãos imundas até aos ossos, que se regozija em praças
redondas com o sangue a jorrar sobre a terra batida. Gente como aquela hedionda
gente que, cumpridas as rezas domingueiras, segue desalmada pelos campos, de
caçadeira em riste, a abater cada golpe de asa. Cada vez é mais difícil perdoar
a crueza de se ser gente.
IV
Gostar de animais, amá-los
ferozmente por neles achar um raro agasalho para o frio de existir, é talvez
aquilo que ainda me deixa adormecer em cada noite que se põe. Mas é também
ferida aberta, latejante, caminho magoado, inquietação perene, duelo sem
tréguas, balsa lançada à tempestade tentando resgatar do abismo o poema branco
da alma. É na Achadinha, deitada no seu chão quente, que mais penso no mundo.
Que tento, por um instante de calor, reconciliar-me com ele. Não foi na Achadinha
que soube há dias, com grande alegria, do avanço recente das leis nacionais que
protegem um pouco mais os animais – um caso raro de fulgor num país desbotado
de tristeza. Foi entre paredes, entre papéis, entre vozes que não encontram eco
nas cameleiras do quintal. Mas foi imediatamente da Achadinha que me lembrei
nesse dia solar, porque é a Achadinha, o seu chão quente cravado de pegadas,
que me faz crer ainda no mundo – como quem crê nas fadas, nos anjos e nas
rosas.
V
Aos animais devemos essa luz solitária,
quase música, quase silêncio, a que chamamos deus. Não o deus da Bíblia, que
não sei onde repousa, mas aquele que cuida da alvorada. Porque eles o conhecem,
porque com ele privam quando a primeira luz desponta. Deus partiu de nós há
muitos ontens. Deixou a gente sem céu. Vive agora silencioso entre as pegadas
de que se faz o chão da Achadinha. E eu sinto-o perfeitamente, quando ali deito
o meu corpo quebradiço, olhando ansiosa os gatos poema, que vêm e vão,
amparando este cansaço de ser gente.
Renata Correia Botelho
In:
“Cão Celeste”, n.º 5
Lisboa,
Maio de 2014.
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