Bem vindo(a) ao NaturMariense

Convidamo-lo(a) a ler, participar e juntar-se às causas defendidas pelo CADEP-CN e pelos Amigos dos Açores, em Santa Maria.

Escreva, dê ideias e denuncie situações: cadep.cn@gmail.com ou santamaria@amigosdosacores.pt


11 de julho de 2014

“OS DONOS DA ALVORADA” – DE RENATA CORREIA BOTELHO

(Um verdadeiro “hino literário” aos animais, da autoria da jovem e talentosa deputada regional Renata Botelho, para quem a defesa do bem-estar animal também conta na sua ação cívica e política, assim como o avanço civilizacional necessário na relação dos açorianos com os seres vivos.)
--
I
Foto: Renata Botelho (In Blogue da autora)
Chego à Achadinha e poiso o corpo sobre o chão quente. Deixo que a realidade, vivaz e rasa, tome conta de mim, da minha respiração, das sombras que me povoam. Que se vá instalando com doçura em cada pedaço de pele. Nisto vão chegando os gatos, um a um, em passadas cautelosas. Percebo nos seus olhos a ternura do reencontro, mesmo  naqueles que nunca consigo afagar, porque a sua liberdade e a sua bravura não consentem as minhas mãos temerosas. Nunca, como eles, fui capaz de atravessar destemidamente o escuro. Nunca, como eles, apontei as garras ao medo, riscando de coragem a noite funda. Alguns não me perdoam essa fraqueza, esse meu ser excessivamente gente, e têm toda a razão. A esses apenas peço, em surdina, que me emprestem, assim de viés, um raspão da sua presença. Deito-lhes bocadinhos de comida e água fresca. Pelo chão, pelas escadas, pelo alpendre. Vêm e vão, num silêncio-poema, fitando, serenos, a minha ansiedade. 
II
Pouco na vida me comove tanto, desde criança, como a verdade dos animais. A verdade inteira de serem exactamente o que são, corações limpos alumiando a palidez do universo. Nus, sem panos a mentir-lhes o corpo nem máscara a fintar-lhes a existência. Trajados apenas da espantosa grandeza com que pisam a terra, com que se abrigam da chuva entre pinheiros, com que passeiam sobre o inferno, semeando o dia. Cresci a encontrá-los e a perdê-los. A exultar a sua presença como uma janela aberta para o mar. A chorar a sua falta quando amanhã se torna palavra insuportável. Cresci a descobrir neles aquele alento das madrugadas, que só poesia e animais são capazes de dizer. A fundir, sem qualquer distância, a minha na sua vida. Cães, gatos, cavalos, burros, passarinhos de toda a espécie, tartarugas, grilos, caracóis, lesmas, borboletas, bichinhos de conta. Nunca, porém, como eles, aprendi a ver para além dos olhos, nem a amar para além do amor, nem a ler para além das linhas que as minhas mãos baças percorrem. Sou gente, apenas. Só gente. Assustadiça, medrosa, quebrada, descontente, sem saber, como eles, segurar com ousadia o fio estreito da vida. Gente, tão demasiado gente.

III
Tão imperdoavelmente gente. Porque, ainda que muros de fogo nos separem, imperdoavelmente gente como aquela gente que os coloca no carro, ruma à mais distante das estradas, lhes atira uma bola colorida e arranca, facínora, em marcha veloz. Gente como aquela odiosa gente que os açoita, numa deslealdade sem nome, invejosa da sua valentia. Gente como aquela gente, de mãos imundas até aos ossos, que se regozija em praças redondas com o sangue a jorrar sobre a terra batida. Gente como aquela hedionda gente que, cumpridas as rezas domingueiras, segue desalmada pelos campos, de caçadeira em riste, a abater cada golpe de asa. Cada vez é mais difícil perdoar a crueza de se ser gente. 

IV
Gostar de animais, amá-los ferozmente por neles achar um raro agasalho para o frio de existir, é talvez aquilo que ainda me deixa adormecer em cada noite que se põe. Mas é também ferida aberta, latejante, caminho magoado, inquietação perene, duelo sem tréguas, balsa lançada à tempestade tentando resgatar do abismo o poema branco da alma. É na Achadinha, deitada no seu chão quente, que mais penso no mundo. Que tento, por um instante de calor, reconciliar-me com ele. Não foi na Achadinha que soube há dias, com grande alegria, do avanço recente das leis nacionais que protegem um pouco mais os animais – um caso raro de fulgor num país desbotado de tristeza. Foi entre paredes, entre papéis, entre vozes que não encontram eco nas cameleiras do quintal. Mas foi imediatamente da Achadinha que me lembrei nesse dia solar, porque é a Achadinha, o seu chão quente cravado de pegadas, que me faz crer ainda no mundo – como quem crê nas fadas, nos anjos e nas rosas.
 
V
Aos animais devemos essa luz solitária, quase música, quase silêncio, a que chamamos deus. Não o deus da Bíblia, que não sei onde repousa, mas aquele que cuida da alvorada. Porque eles o conhecem, porque com ele privam quando a primeira luz desponta. Deus partiu de nós há muitos ontens. Deixou a gente sem céu. Vive agora silencioso entre as pegadas de que se faz o chão da Achadinha. E eu sinto-o perfeitamente, quando ali deito o meu corpo quebradiço, olhando ansiosa os gatos poema, que vêm e vão, amparando este cansaço de ser gente. 

Renata Correia Botelho
In: “Cão Celeste”, n.º 5
Lisboa, Maio de 2014.

Sem comentários: