Entrevista a Orsulya Vargas, catedrática do Instituto de
Biologia Molecular e Celular com background em medicina e direito, sendo especialista
sobre ética e teor jurídico em temas ligados ao direitos e bem-estar dos
animais.
(Extrato da entrevistas com
alguns cortes)
A.O.: Orsulya, antes de mais
podias explicar-nos o que é um direito legal?
Orsulya Vargas: A resposta é fácil: direitos
legais são aqueles que existem sob as regras de sistemas legais. O nosso
sistema legal é baseado no entendimento de direitos e responsabilidades legais
das pessoas. A existência de direitos legalmente consagrados não é recente, do
ponto de vista histórico. Por exemplo, o sistema legal romano clarificava quem
tinha o direito legal de passar leis, quem podia julgar casos, quais os
direitos dos cidadãos, ou das mulheres. Escravos não tinham direitos
consagrados e que pudessem reivindicar, nem direitos baseados na cidadania.
Na legislação contemporânea a
palavra-chave é o conceito de pessoa. Apenas uma pessoa, com personalidade
jurídica, tem direitos e responsabilidades consagradas na lei. O conceito de
pessoa foi a questão central durante a abolição da escravatura e a luta pelos
direitos das mulheres, estando a personalidade jurídica do feto no centro do
debate atual. Há hoje muita discussão em torno dos direitos do feto e direito à
reprodução. Uma questão alargada que se coloca na sociedade moderna é a dos
direitos dos animais, pois a civilidade exige que a palavra-chave passe a ser o
conceito de “vida” tomando os seres humanos e não humanos, pela mesma condição
biológica.
Há ainda algo que queria
acrescentar. As leis naturais são diferentes dos direitos legais. Os direitos
naturais são universais e inalienáveis, e não dependem de contingências da lei,
sendo independentes de qualquer governo nacional ou internacional. Os direitos
humanos são considerados direitos naturais. Os humanos nascem livres e iguais
entre si.
AO: Muitos comentadores têm a
este respeito declarado que os animais não têm direitos, quase como se isso
fosse um fato indiscutível. Há assim duas questões de fundo, que convém
considerar separadamente. Primeiramente, do ponto de vista da teoria legal,
podem os animais ter direitos, poderão ser entidades detentoras de direitos?
OV: Muitos crêem que sim, outros
não. Outros ainda consideram que a personalidade jurídica apenas deveria ser
atribuída a alguns animais em particular. A principal questão aqui é que na
visão tradicional os animais são propriedade humana. Esta abordagem deverá ser
rejeitada pela reclamação de uma mudança para um paradigma não-antropocêntrico.
Esta nova abordagem moderna e exível pela ética humana implica uma mudança
fundamental nas relações entre humanos e animais, e afeta radicalmente o modo
como são tratados.
Mas para responder à tua questão:
sim, tecnicamente, os animais poderão e deverão ter direitos, num sentido
limitado, mais isso terá de ser mais trabalhado do ponto de vista técnico.
Mas a extensão do conceito de
pessoa a todos os animais colhe o apoio de muitos académicos. A teoria
tradicional em direitos dos animais do filósofo Tom Regan assenta
fundamentalmente no interesse que estes têm em evitar o sofrimento. Seguindo
esta mesma linha, o jurista Gary Francione argumenta simplesmente que os
animais requerem um só direito: o de não serem considerados e tratados como
propriedade, ou objetos, mas como vidas.
Para além da existente Declaração
Universal dos Direitos dos Animais, que existe como referência ética, uma forte
campanha para uma lei ‘universal’ para os animais tem vindo a ser promovida
pelo Animal Legal Defense Fund. A iniciativa deste influente grupo é a Animal
Bill of Rights, que pretende conferir direitos naturais aos animais. Esta proposta
de legislação, apresentada numa petição dirigida ao Congresso dos EUA, pretende
proteger os animais, reconhecer que são seres sencientes, e atribuir-lhes
direitos legais na sociedade humana.
Um outro exemplo é o Nonhuman
Rights Project, que tem procurado que seja reconhecido o estatuto de pessoa a
certos animais, uma vez que apenas um ser dotado de personalidade jurídica
poderá ser detentor de quaisquer direitos legais. Ainda que o projecto seja nos
Estados Unidos, e com base na common law, o resultado terá impacto como
mensagem universal. Uma conceituada equipa de advogados têm preparado o
processo para apresentar já em 2013. Esperemos um bom veredito.
Acrescento que Steven Wise, o
presidente do Nonhuman Rights Project, é um jurista muito influente na área do
direito animal. Ele argumenta em ‘Drawing the line’ que alguns animais, e em
particular os primatas, atingem os requisitos necessários para terem
personalidade jurídica, e dever-se-ia por isso atribuir certos direitos e
protecção, alargados aos outros animais sencientes.
Mas gostaria ainda de dar mais um
exemplo interessante de uma iniciativa legal deste género. A teoria de
cidadania de Kymlicka (‘Zoopolis: A Political Theory on Animal’) divide os
animais em três categorias: animais domésticos, que basicamente inclui os
animais de companhia e os criados na agro-pecuária; animais selvagens; e
animais que estão no limiar entre os dois grupos anteriores, como os pombos,
esquilos e outros adaptados a uma vida entre os humanos, ainda que não estejam
sob o seu cuidado directo. Cada diferente relação humano-animal irá pressupor
implicações legais distintas. Animais domésticos seriam assim cidadãos, animais
selvagens teriam soberania e animais-charneira seriam tratados como cidadãos. A
parte mais importante desta sugestão é que os animais domésticos teriam o
direito prima facie de partilhar espaços públicos.
OV: As actuais leis relativas aos
animais tomam a perspectiva do bem-estar, e regulam usos específicos de
animais. A maior parte das leis nacionais apenas reconhece personalidade
jurídica aos humanos, sendo os animais propriedade. Em contraste com a
abordagem do bem-estar, vários países têm adotado leis que contêm elementos de
direitos legais dos animais, como o direito à vida e combate à tortura. Assim,
os direitos dos animais existem de fato na legislação nacional de alguns
países, mas não de modo sistemático, pois não refletem os direitos humanos. Um
exemplo bem conhecido é o dos direitos conferidos aos grandes primatas em
Espanha, e que incluem o direito à vida, a proteção da liberdade individual e a
proibição da tortura.
Como salientei, há uma grande
diferença entre estes direitos dos animais e direitos humanos básicos. Os
direitos humanos estão incorporados no sistema legal, mas também diferem em
‘profundidade’. Os direitos dos animais são referentes a necessidades biológicas:
direito à liberdade, proteção contra tortura, direito ao acesso a recursos
naturais, bem-estar etc. Os direitos fundamentais dos humanos são muito mais
complexos: direito à privacidade, direito a uma nacionalidade, direito a ter
família, de possuir propriedade, de livre expressão, de segurança, de ser
considerado inocente até prova em contrário, de ser reconhecido como uma
pessoa, direito ao trabalho, etc.
AO: Parece-me que aquilo de que
falaste aqui é mais se os animais têm ou não protecção legal, mas não tanto se
têm ou não direitos. Ou ambas são a mesma coisa, de um ponto de vista jurídico?
OV: A proteção aos animais e os
direitos dos animais sobrepõem-se bastante, nalguns aspetos. Muitos consideram
que as leis anti-crueldade reconhecem direitos porque os animais são protegidos
pelo seu valor intrínseco e não pela perda financeira que a sua perda possa
significar para os seus donos, por exemplo. Os animais são protegidos nas atuais
leis anti-crueldade porque são seres sencientes, sendo claramente capazes de
sofrimento e felicidade. Mas estas leis, ainda insípidas, não constituem
reconhecimento claro de direitos porque não clarificam o estatuto legal dos
animais. Para que reconhecimento legal dos animais seja semelhante ao dos
humanos, os animais deverão ser considerados como personalidades jurídicas. Mas
os direitos são um tema, ainda, controverso na lei relativa aos animais,
havendo, no entanto, fortes iniciativas para adaptar o estatuto legal dos
animais às leis para os humanos.
Fonte: “Direitos para todos os animais”
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